14 de dezembro de 2009

A vizinha do lado

Raro era o dia em que os meus olhos não repousavam na minha vizinha. O seu corpanzil inerte, tricotando incessantemente reminiscências no alpendre da sua habitação, era visível através da janela do meu quarto.

De cabelo grisalho e desgrenhado, olhos graves e miúdos, um ritual insistente dos seus cotovelos afilados incidia no frenético gesticular dos braços moles com direcção ao vazio. As mãos grossas e ásperas coçavam o rosto cujas rugas transmitiam uma sensação de pura apatia.

E era com um deleite inquieto que escutava secretamente as suas vagarosas e ruidosas falas: lamentações, utopias e conselhos de uma vida dura para outras existências anónimas.

Fora sempre ela o exemplo do que eu não queria viver nem ser: o corpo do marido dilacerado no Ultramar, o duro trabalho no campo, a rejeição voluntária do único descendente que se recordava dela, um rol de ódios e amarguras pendentes em cada prega do estômago preenchido de fel.

Não mais avistei a minha vizinha, a quem decidiram trocar a cadeira balouçante pelo leito frio do hospital. Insistem na luta por uma vida que ela afirma a pés juntos não desejar. Menos inóspito seria certamente definhar confortavelmente no regalo do ar campestre. Mas não, o prolongamento inútil daquele sofrimento dá-se num local estranho, onde nem mil pessoas podem disfarçar a solidão que a minha vizinha sente. Essa amarga solidão… que eu tanto receio.

2 comentários:

  1. E o pior é quase ter a certeza que vamos todos acabar assim e nos arrepender por um dia ter pensado que ter 16 anos podia ser mau ^^'

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