16 de maio de 2010

Quando, na tépida sobriedade das minhas manhãs, me olho ao espelho, não me reconheço.

O meu corpo, o meu verdadeiro corpo, aquele que corresponde ao espírito que o alimenta, é magro, muito magro, quase cadavérico. As maçãs do rosto são salientes, as olheiras profundas, os olhos semicerrados, os lábios gretados. Apenas alguns feixes de cabelo, de um castanho descolorado, me cobrem o crânio. As mãos, essas, são secas e envelhecidas, e os dedos que as constituem estão deformados com o passar dos anos que supostamente vivi. Não possuo seios nem genitais, não sou homem nem mulher, apenas matéria inerte a que preferem designar de ser humano. Este é o meu verdadeiro eu, envergando somente um trapo esbranquiçado, e que se vai metamorfoseando ao sabor dos meus caprichos e vontades.

É por isso que observo o meu reflexo e em nada lhe sou semelhante: o que está do outro lado é uma personagem que decidi incarnar – uma jovem de longos cabelos castanhos, de formas arredondadas, equilibrada, sorridente, cheia de energia. É bem mais fácil viver deste modo do que através da rapariguinha de franja e roliça que sentia constantemente o seu mundo a colapsar (essa outra minha vertente que antecedeu a actual).

Bem que posso parecer feliz, assim, impregnada nesta matéria… Porém, o meu espírito está constantemente a lacrimejar. Todas as emoções o atravessam e nenhuma o atinge mas, mesmo assim, todas as noites oiço um choro miudinho que me tortura as entranhas e que me ordena para parar de fingir e vestir a minha verdadeira pele. Pisa-me o rosto, cospe-me para os olhos e sussurra-me numa voz rouca e malévola:

- Estás cada vez mais distante de ti mesma…

Ignoro-o frequentemente, reforço algumas características da personagem que estou a construir e moldo-me com maior rigor.

Quero abandonar este corpo, libertar-me, flutuar sem objectivo nem destino… Deixar para trás as pessoas, as pessoas, esses sórdidos seres, e que fobia eu lhes tenho!...



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